terça-feira, 24 de maio de 2016

Neste fim de semana, que tal uma releitura de Poe em A coruja de Gilberto Júnior

A Coruja

Numa noite fria, escura, fez-se névoa e negrura,
E eu, curiosa criatura, contemplava tal moldura,
Escondido em meus umbrais. Após muito meditado,
Purgando pecados periclitados, um sonido aziago
Interrompeu-me pressuroso, pressago, a Eleonora meus madrigais.
“É só o vento e nada mais”!

Ah, bem eu lembro com desgosto! Era ainda mês de Agosto!
Fogo e lareira, ia relendo vetustos versos magistrais.
Exausto, adormecido, escutei súbito ruído, rouquejando roufenho batido,
A pungir lento e puído, murmurando em meus portais.
Imoto, hirto, empedernido, ignoto vulto sinistro tumultuando meus umbrais.
Uma coruja, e nada mais!

Desatei a atadura, da sombria fechadura, e adejando, sem cesura,
Tatalou austera, sem frescura, augusta, avançando àquelas horas,
Decorosa e radiante, fulgurando radiosa. Rutilando a todo instante, rara, rubra e portentosa.
Não parou nem um instante, hierática, soberba e fogosa. Repetiu-me, à porta, pungente, “Eleonora, Eleonora”.
Voz rouca e postura majestosa. Tatalando a fera à minha porta, “Eleonora, Eleonora”. Voou adiante, fulgente, e perguntei-me: “Ma’qui raios, e agora”?

Passada a força da imagem, admirei sua plumagem. A compostura e sua figura traziam rasgos fantasmais.
Tangenciou a cortina, causando-me sustos sepulcrais, rodopiante, à surdina, soltando pios surreais.
Arrepiadas as plumas rubras e verde-plúmbeas, ela voava e pairava. Emanava colorida brancura, e nenhuma amargura se lhe vislumbrava.
Ainda que decidido a dar-lhe abrigo e resolvido a ser-lhe amigo, vendo a visitante, tive arritmias infernais.
Bradava o nome Eleonora, no presente, minha senhora. “Serei feliz no agora”?
“Talvez nunca, nunca mais”!

Enfeitiçado, a todo custo, vi-a alçar-se até ao busto
De Atena, antigo, estreito, adusto, que quedava em meus umbrais.
Estarrecido, febril e deslumbrado, ansiava por algum recado
Que me livrasse do passado e elucidasse sonhos soturnos que ninguém sonhou iguais.
Sem hesitar e em segredo, elevando os dáctilos sem medo, repetiu-me em tons fatais:
“Eleonora que lhe adora, a saudade lhe devora”. Depois silêncio, e nada mais!

Mandar-lhe ao degredo eu ansiava, mas quanto mais a enxotava,
Mais à minha porta ia ficando. Impávida, sobre Palas empoleirada, ali, em face de meus vitrais.
Foi-se indo a invernia, enfadonha pérfida gelosia,
E a coruja tristonha, que chegou com ventania, agora risonha não amedrontava mais.
Antes esquálida e pálida, ria-se muito dos de outrora vendavais.
Âmbar luzente em seus olhos brilhava: “Te consola que já vem Eleonora”. Só isso dizia, e nada mais.

Ah, mas claro que ainda lembro! Era um ermo mês Setembro!
Respaldado em uma cadeira, absorto em brincadeiras
Com minha coruja alvissareira, que não sossegava jamais.
Eis que adentra um ser bem torvo, ave negra de olhar torto.
Cravando-nos maus agouros, vaticínios medonhos e infernais.
“Minha coruja, o que isto”? “É a ave de satanás”. Espanto, trevas. Nada mais.

Sem perder as estribeiras, encarei tal ave agoureira.
Com ares de fidalguia, batia asas. Hediondo demônio flutuava. Nobreza sem cortesia. Pavoroso.
Capeta tinhoso aquele corvo. Vomitavam brasas seus olhos diabólicos e turvos.
O bico tortuoso grasnava tétrico. Teratológico estorvo. Tisnava atroz o ser horroroso.
Infligiu-me imensa dor, crocitando indecoroso:
“Não esqueça jamais Leonor”.

“Ave negra, pensa, curva, filha da noite, de odor almíscar e suja”!
“Ande, voe, suma, fuja”! “Não repita este nome, doloroso e triste nome, nunca mais”.
“Vá, retorne ao seu diabo. Não negreje o nome sagrado de meu amor conservado entre as hostes celestiais.
Amor puro e bem guardado, pelos céus predestinado, sem o qual se jaz débil, assombrado, sem o qual se quer morrer, ir morar com os ancestrais”.
Disse o corvo: “nunca mais”.

Foi que então, a ave lúgubre empoleirou-se arfando fúnebre
Sobre o busto de Atena, vociferando sílabas fatais.
Perquiria, perscrutava, ponderando entronizada,
Agra, negra, ocre, magra, cujas sombras infernais
Perseguiram-me errantes e taciturnas, melancólicas e hibernais.
Perguntei se ia embora. Retorquiu-me: “nunca mais”.

Com palavras tão cortantes, retas pungentes, lancinantes,
Eis que minha companheira se enerva. “Sou coruja de Minerva!
“Deusa Palas, imemorável, de quem sou serva e arauta de seus mistérios nada usuais”!
“Arranca tuas patas pousadas, solta do busto as amarras, pois embora tu te vais”!
“Cansamos de teu grasnar disforme, de teus ritornelos tão iguais.
Eleonora vive. Leonor dorme. Viva a aurora e o amor”. Agônico, o corvo: “nunca mais”.

A coruja fremia, e o corvo sequer tremia.
Garras afiadas avançaram como flechadas mortais.
Mas o belzebú fez-se enorme, feito rochedo transfigurado e disforme.
Ainda que a coruja não se conforme, seus golpes lhe foram fatais.
Suas penas negrejantes, malfazejas e ancestrais,
Feriram-lhe cortantes, enquanto alucinava: “nunca, nunca mais”.

“Pobre minha coruja, tão só minha. Filha de Atena, minha corujinha”.
Languidamente, agonizante, soçobrando, banhada em sangue. Assim, coruja, Eleonora.
O negro viajor, em cruéis reminiscências, lembrava-me Leonor.
Torturando-me com evocações de seu mórbido alvor, martelava-me com o outrora.
“Corvo cruel, esqueça a febril Leonor. Quero o vigor de Eleonora.
Se fui feliz, não sei. Fui-o outrora agora”.

E sereno fui sorvendo nepentes de que me ia esquecendo.
Daqueles de que não sabemos, se bálsamos ou venenos ancestrais.
Não havia urdidura, que atacasse a hostil catadura,
Que removesse a solene criatura, morenamente pousada sobre meus umbrais.
Tragicamente, inerte, não lhe importavam meus cabedais.
Mover-se-ia nunca mais.

“Bicho do Hades, fera de Lúcifer. Arrancaste o fulgor de minha coruja.
E também o frescor, fugente, que levaste, de repente, com teus ares rituais.
Não mais tens o meu respeito. Chamo-te por tu, tens meu desprezo.
Carrega-o contigo no teu peito. Maldita ave agourenta. Prenúncio de temporais.
Jura que teus pés tenebrosos não pisarão mais meus portais! Vai-te¨?
“Nunca mais”.

“Profeta negro e escabroso, satã vil, ser monstruoso.
Voltai a Plutão, de onde és egresso, onde agradais quando falais”.
“Usando vós, acendendo incenso, fiz esforço tamanho, imenso,
E, ainda assim, alucinante, o ar denso, mesmo agreste vós ficais.
Noturna desventura das minhas mágoas atuais.
Será findo, ainda, o torpor”? “Nunca, nunca, nunca mais”.

E, novamente, a dita-cuja, extenuada, bendita coruja,
Levanta-se e finca-lhe o bico, contudo admitamos que são forças desiguais.
O corvo, asqueroso tal qual serpente, sabendo meus amores ausentes,
Leonor, Eleonora, a antiga e a de agora, como os ventos conjeturais,
Vociferava escancarando, crocitava esparzindo, mil impropérios nada banais:
“Não terás flores nunca mais”.

“Anciã criatura do mal. Turibulário impuro. Pesar sinistro, abissal, obscuro.
Os dissabores que não procuro, me os escrutasse sem afagos ternais.
Não ligaste para minhas dores. Não inquiriste sobre meus temores.
E o frio que canto agora não escasseará jamais.
Deixa-me a coruja, encolhidinha, a cuidar sempiterna de suas feridas. Se venceste o prélio, só nos resta a vida. Já tens a fama de ave maldita. Por acaso ousará algum outro tirar-te do busto, quando te mostras tão augusto, com teus ares robustos e infernais”?

Finalmente, riu o corvo: “nunca, nunca, nunca mais”!



















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