A
Coruja
Numa noite fria, escura, fez-se névoa e
negrura,
E eu, curiosa criatura, contemplava tal
moldura,
Escondido em meus umbrais. Após muito
meditado,
Purgando pecados periclitados, um sonido
aziago
Interrompeu-me pressuroso, pressago, a
Eleonora meus madrigais.
“É só o vento e nada mais”!
Ah, bem eu lembro com desgosto! Era ainda mês
de Agosto!
Fogo e lareira, ia relendo vetustos versos
magistrais.
Exausto, adormecido, escutei súbito ruído,
rouquejando roufenho batido,
A pungir lento e puído, murmurando em meus
portais.
Imoto, hirto, empedernido, ignoto vulto
sinistro tumultuando meus umbrais.
Uma coruja, e nada mais!
Desatei a atadura, da sombria fechadura, e
adejando, sem cesura,
Tatalou austera, sem frescura, augusta,
avançando àquelas horas,
Decorosa e radiante, fulgurando radiosa. Rutilando
a todo instante, rara, rubra e portentosa.
Não parou nem um instante, hierática, soberba
e fogosa. Repetiu-me, à porta, pungente, “Eleonora, Eleonora”.
Voz rouca e postura majestosa. Tatalando a
fera à minha porta, “Eleonora, Eleonora”. Voou adiante, fulgente, e
perguntei-me: “Ma’qui raios, e agora”?
Passada a força da imagem, admirei sua
plumagem. A compostura e sua figura traziam rasgos fantasmais.
Tangenciou a cortina, causando-me sustos
sepulcrais, rodopiante, à surdina, soltando pios surreais.
Arrepiadas as plumas rubras e verde-plúmbeas,
ela voava e pairava. Emanava colorida brancura, e nenhuma amargura se lhe
vislumbrava.
Ainda que decidido a dar-lhe abrigo e resolvido
a ser-lhe amigo, vendo a visitante, tive arritmias infernais.
Bradava o nome Eleonora, no presente, minha
senhora. “Serei feliz no agora”?
“Talvez nunca, nunca mais”!
Enfeitiçado, a todo custo, vi-a alçar-se até
ao busto
De Atena, antigo, estreito, adusto, que
quedava em meus umbrais.
Estarrecido, febril e deslumbrado, ansiava
por algum recado
Que me livrasse do passado e elucidasse
sonhos soturnos que ninguém sonhou iguais.
Sem hesitar e em segredo, elevando os
dáctilos sem medo, repetiu-me em tons fatais:
“Eleonora que lhe adora, a saudade lhe
devora”. Depois silêncio, e nada mais!
Mandar-lhe ao degredo eu ansiava, mas quanto
mais a enxotava,
Mais à minha porta ia ficando. Impávida,
sobre Palas empoleirada, ali, em face de meus vitrais.
Foi-se indo a invernia, enfadonha pérfida
gelosia,
E a coruja tristonha, que chegou com
ventania, agora risonha não amedrontava mais.
Antes esquálida e pálida, ria-se muito dos de
outrora vendavais.
Âmbar luzente em seus olhos brilhava: “Te
consola que já vem Eleonora”. Só isso dizia, e nada mais.
Ah, mas claro que ainda lembro! Era um ermo
mês Setembro!
Respaldado em uma cadeira, absorto em
brincadeiras
Com minha coruja alvissareira, que não
sossegava jamais.
Eis que adentra um ser bem torvo, ave negra
de olhar torto.
Cravando-nos maus agouros, vaticínios
medonhos e infernais.
“Minha coruja, o que isto”? “É a ave de
satanás”. Espanto, trevas. Nada mais.
Sem perder as estribeiras, encarei tal ave
agoureira.
Com ares de fidalguia, batia asas. Hediondo
demônio flutuava. Nobreza sem cortesia. Pavoroso.
Capeta tinhoso aquele corvo. Vomitavam brasas
seus olhos diabólicos e turvos.
O bico tortuoso grasnava tétrico.
Teratológico estorvo. Tisnava atroz o ser horroroso.
Infligiu-me imensa dor, crocitando
indecoroso:
“Não esqueça jamais Leonor”.
“Ave negra, pensa, curva, filha da noite, de
odor almíscar e suja”!
“Ande, voe, suma, fuja”! “Não repita este
nome, doloroso e triste nome, nunca mais”.
“Vá, retorne ao seu diabo. Não negreje o nome
sagrado de meu amor conservado entre as hostes celestiais.
Amor puro e bem guardado, pelos céus
predestinado, sem o qual se jaz débil, assombrado, sem o qual se quer morrer,
ir morar com os ancestrais”.
Disse o corvo: “nunca mais”.
Foi que então, a ave lúgubre empoleirou-se
arfando fúnebre
Sobre o busto de Atena, vociferando sílabas
fatais.
Perquiria, perscrutava, ponderando
entronizada,
Agra, negra, ocre, magra, cujas sombras
infernais
Perseguiram-me errantes e taciturnas,
melancólicas e hibernais.
Perguntei se ia embora. Retorquiu-me: “nunca
mais”.
Com palavras tão cortantes, retas pungentes,
lancinantes,
Eis que minha companheira se enerva. “Sou
coruja de Minerva!
“Deusa Palas, imemorável, de quem sou serva e
arauta de seus mistérios nada usuais”!
“Arranca tuas patas pousadas, solta do busto
as amarras, pois embora tu te vais”!
“Cansamos de teu grasnar disforme, de teus
ritornelos tão iguais.
Eleonora vive. Leonor dorme. Viva a aurora e
o amor”. Agônico, o corvo: “nunca mais”.
A coruja fremia, e o corvo sequer tremia.
Garras afiadas avançaram como flechadas
mortais.
Mas o belzebú fez-se enorme, feito rochedo
transfigurado e disforme.
Ainda que a coruja não se conforme, seus
golpes lhe foram fatais.
Suas penas negrejantes, malfazejas e
ancestrais,
Feriram-lhe cortantes, enquanto alucinava:
“nunca, nunca mais”.
“Pobre minha coruja, tão só minha. Filha de
Atena, minha corujinha”.
Languidamente, agonizante, soçobrando,
banhada em sangue. Assim, coruja, Eleonora.
O negro viajor, em cruéis reminiscências,
lembrava-me Leonor.
Torturando-me com evocações de seu mórbido
alvor, martelava-me com o outrora.
“Corvo cruel, esqueça a febril Leonor. Quero
o vigor de Eleonora.
Se fui feliz, não sei. Fui-o outrora agora”.
E sereno fui sorvendo nepentes de que me ia
esquecendo.
Daqueles de que não sabemos, se bálsamos ou
venenos ancestrais.
Não havia urdidura, que atacasse a hostil
catadura,
Que removesse a solene criatura, morenamente
pousada sobre meus umbrais.
Tragicamente, inerte, não lhe importavam meus
cabedais.
Mover-se-ia nunca mais.
“Bicho do Hades, fera de Lúcifer. Arrancaste
o fulgor de minha coruja.
E também o frescor, fugente, que levaste, de
repente, com teus ares rituais.
Não mais tens o meu respeito. Chamo-te por
tu, tens meu desprezo.
Carrega-o contigo no teu peito. Maldita ave
agourenta. Prenúncio de temporais.
Jura que teus pés tenebrosos não pisarão mais
meus portais! Vai-te¨?
“Nunca mais”.
“Profeta negro e escabroso, satã vil, ser
monstruoso.
Voltai a Plutão, de onde és egresso, onde
agradais quando falais”.
“Usando vós, acendendo incenso, fiz esforço
tamanho, imenso,
E, ainda assim, alucinante, o ar denso, mesmo
agreste vós ficais.
Noturna desventura das minhas mágoas atuais.
Será findo, ainda, o torpor”? “Nunca, nunca,
nunca mais”.
E, novamente, a dita-cuja, extenuada, bendita
coruja,
Levanta-se e finca-lhe o bico, contudo
admitamos que são forças desiguais.
O corvo, asqueroso tal qual serpente, sabendo
meus amores ausentes,
Leonor, Eleonora, a antiga e a de agora, como
os ventos conjeturais,
Vociferava escancarando, crocitava
esparzindo, mil impropérios nada banais:
“Não terás flores nunca mais”.
“Anciã criatura do mal. Turibulário impuro.
Pesar sinistro, abissal, obscuro.
Os dissabores que não procuro, me os
escrutasse sem afagos ternais.
Não ligaste para minhas dores. Não inquiriste
sobre meus temores.
E o frio que canto agora não escasseará
jamais.
Deixa-me a coruja, encolhidinha, a cuidar
sempiterna de suas feridas. Se venceste o prélio, só nos resta a vida. Já tens
a fama de ave maldita. Por acaso ousará algum outro tirar-te do busto, quando
te mostras tão augusto, com teus ares robustos e infernais”?
Finalmente, riu o corvo: “nunca, nunca, nunca
mais”!